A viagem que Guerra Junqueiro nunca fez
“Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente, Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente, Repartindo por todo o escuro continente A mortalha de Cristo em tangas d’algodão”
Guerra Junqueiro, À Inglaterra (em Finis Patriae, 1890)
Em 1890, Guerra Junqueiro foi eleito deputado pela segunda vez, representando o distrito de Quelimane, em Moçambique, território que nunca tinha visitado e que nunca viria a visitar. Meses antes, a Inglaterra humilhara Portugal com um ultimatum que aniquilava definitivamente o sonho cor-de-rosa de unir os domínios portugueses de Angola e Moçambique numa faixa contínua de terreno, estendida da costa à contracosta; em resposta, o até então genuinamente monárquico Guerra Junqueiro (filiara-se em 1879 no Partido Progressista) humilhará o Rei D. Carlos num poema, O Caçador Simão, que há-de aparecer quase a fechar o seu inflamado Finis Patriae, manifesto dirigido “à mocidade das escolas” posto a circular em Abril desse ano. Pouco tempo depois, em 1891, juntava-se ao Partido Republicano.
O que significaria em 1890, para um português de Freixo de Espada à Cinta, uma palavra tão estrangeira como Quelimane? Que imagem mental teria Guerra Junqueiro desse longínquo distrito da Zambézia que lhe coubera representar? O que saberia ele das multidões de escravos (em 1859 eram, oficialmente, pouco menos do que dez mil) que por essa altura já haviam desaguado na cidade mandada fundar por Portugal junto à foz do Rio dos Bons Sinais; dos palmares a perder de vista que prazeiros e prazeiras herdavam dos pais e transmitiam aos filhos; ou das plantações de coqueiros, sisal e amendoim que companhias majestáticas como a que o seu amigo Oliveira Martins chegou a dirigir geriam a partir de Lisboa? O que o faria acreditar que, ao contrário da “cínica”, “bêbeda” e “impudente” Inglaterra a que se atirava no final de Finis Patriae, Portugal levava “ao negro e à escravidão” mais do que “chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente”?
Antes, durante e depois da sua brevíssima carreira como deputado pelo distrito de Quelimane, Guerra Junqueiro foi um coleccionador de antiguidades e de objectos de arte. Da sua colecção, em grande parte depositada na Casa-Museu Guerra Junqueiro, não constam quaisquer peças africanas. Nalgumas das suas biografias, Moçambique não é sequer uma nota de rodapé. Mais de cem anos depois, sem a pretensão de reparar uma injustiça histórica, esta exposição ficciona o seu encontro com um território que nunca visitou.
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