Podia ter tido um sonho destes. Um sonho em que passava a tarde a pescar, e à noite tinha em cima da mesa, com um garfo de um lado e uma faca do outro, os frutos da minha paciência. Ou em que mergulhava de cabeça num conto de fadas e tinha em cima da mesa, com um garfo de um lado e uma faca do outro, o mar, o rio e a montanha.
No dia anterior lá estava lá como um bom pé-rapado dentro de uma tenda num parque de campismo, algo que faço com muito gosto. Mas não há dois dias iguais!
Acordei e a minha companhia de viagem disse-me: “Vamos ter mais um dia de estrada, mas este será diferente, não nos esqueceremos!”.
Lá fomos nós, e às tantas, após uma encruzilhada, vimo-nos como que a descer um desfiladeiro. Cheguei a pensar que íamos parar no fim do mundo. Quanto mais descíamos, mais serpenteava a estrada. E quando menos esperávamos (ou quando já não esperávamos…) um lugar meteu-se na nossa estrada, estávamos lá, tínhamos finalmente chegado ao destino. Casa Marcial, sim, lá estávamos nós.
No jardim junto ao parque de estacionamento por onde entrámos, gente muito aprumada naquilo que parecia ser um cocktail. Uma empregada do restaurante dirige-se a nós (ou melhor, à nossa roupa já batida por uns dias de praia e de campismo), isto depois de com muita classe e subtileza nos ter tirado as medidas de cima a baixo: “Posso ajudar? Têm alguma reserva?” E eu despenteado e suado, de calções e t-shirt, no registo o mais confortável possível para uma condução de algumas horas.
Passámos por vários controlos.
-Vou ver se ainda temos lugar
-Aqui têm a carta para irem vendo os nossos dois menus antes de subirem
-O preço de cada menu é por pessoa
-Se escolherem a versão reduzida não podem escolher dois menus diferentes
E, claro, se lá chegámos é porque já tinha havido toda essa ponderação.
Continuando. Estávamos no lugar certo, num lugar magnífico, noutro mundo. E pela frente o menu de oito pratos – porque escolhemos a versão reduzida… – com que um chefe com duas estrelas Michelin quis homenagear o mar e a montanha das Astúrias onde cresceu.
MENÚ RAICES
Crujiente de algas con gel de limon
Ostras con Jugo de Codium y Calamansi
Lengua de Bacalao, Kimchi, Cebolleta y Ajo Negro
Hoja de Parra
Yema de huevo, maíz y jugo de salazón
Almeja, Licuado de Perejil y Algas
Ventresca de Bonito con Piel de Sardina
Ensalada de Merluza con su holandesa y Huevas Secas
Lengua con Mole de Lentejas y Garrapiñados
Arroz con Pitu de Caleya
Arroz con leche a la manera tradicional
Tociníllo de Muscovado, Manzana y Aceituna Negra
(Com uma pequena ressalva em jeito de rodapé: “El pan se servirá a partir de la yema de huevo”)
Aquilo que para mim foi um workshop começou com comida servida em cima de raízes, de troncos de árvore, de enormes conchas, de cabeças de bacalhau e de sei lá mais o quê!
O corrupio de empregados, entre põe pratos, tira pratos, muda de talheres, dobra guardanapos… Antes de cada prato, uma breve descrição sobre como o chefe transferiu para cada criação a sua relação com aquela natureza e aquela região.
A sucessão de pratos nunca mais parava. E quando pensávamos que tinha acabado, em geral com o clássico
–Postre?
-Café!
, uma “pequena” surpresa… Um sortido de docinhos tradicionais das Astúrias e um licor de avelã num tubo de ensaio. Como se ainda tivéssemos barriga…
Tudo para lá de bom. Afinal estávamos no restaurante (e casa de família!) de Nacho Manzano. E, pelo meio de todos aquele sabores nunca antes imaginados, houve direito a visita do próprio chefe à mesa, queria “a nossa aprovação” do novo prato em estreia naquele dia: um casamento entre três dos peixes mais gordos do Cantábrico, a sardinha, a anchova e o atum bonito.
Nem sequer sei que palavras me saíram, isto em relação ao prato; depois, não me lembro bem, houve ainda alguns segundos de conversa e só depois de Nacho Manzano desaparecer da nossa vista pensei em voz alta:
“A selfie!”, esqueci-me de pedir uma selfie com o chefe.
Talvez devesse ter tentado combinar uma sessão para lhe fazer um retrato, um “retrato criativo” a combinar com os seus pratos criativos. Mania de que sou fotógrafo! Mas em vez de ficar gravado num cartão de memória este dia vai ficar tatuado na minha própria memória.
Ah, e trouxe comigo um exemplar do menu, talvez para emoldurar. E para ter a certeza de que o meu sonho com duas estrelas foi mesmo realidade.
(Obrigado!)
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